O que falar sobre a personagem ítalo-brasileira Lina Bo Bardi em tempos de tantas mudanças no país que ela adotou (e amou) e no mundo?

Missão dantesca trazer à tona reflexões a respeito do centenário da iconoclasta da arquitetura que cravou de modernidade o Brasil dos anos 40 do século passado e ajudou a transformar todas as gerações posteriores

O que falar sobre a personagem ítalo-brasileira Lina Bo Bardi em tempos de tantas mudanças no país que ela adotou (e amou) e no mundo? Lina não foi de forma alguma um ser limitado, ao contrário, foi policêntrica no sentido sociológico que a palavra abrange e nos ensinou a ver todas as faces de um Brasil em construção.

“Tenho inibições arquitetônicas. É uma doença, não é pose. Sou incapaz de projetar um banco, uma mansão particular, um hotel. Teria amado projetar talvez um hospital, escolas, casas populares – mas nunca aconteceu. No fundo, vejo arquitetura como serviço coletivo e como poesia”.

Achillina Bo

Assim como o antropólogo Darcy Ribeiro, Lina nos ensinou a sermos autóctones, amantes da pátria, orgulhosos de uma nação única – a do povo brasileiro. Ecoando a brasilidade que salta de suas próprias palavras – “No meu país de escolha, me senti num país inimaginável, onde tudo era possível. Reencontrei no Brasil as esperanças das noites de guerra, estava feliz e aqui não tinha ruínas!”, podemos nos ater ao fato de hoje sermos um foco de atenção neste mundo globalizado. Lina enxergou muito além do Brasil surrupiado, dividido por castas, manipulado por políticas paternalistas e de baixíssimo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) que se repete atemporalmente nos baixos trópicos; como filha pródiga da vanguarda artística europeia ela vislumbrou a ‘aristocracia do povo’ e uma ‘história grande de liberdade e de abertura’.

Filha da Geração da Resistência, que atravessou e sobreviveu à II Guerra Mundial, a arquitetura de Lina foi profundamente influenciada por um forte dever de intervenção social. Suas obras possuem raízes no racionalismo e na funcionalidade e tem no concreto, no ferro e no vidro os seus expoentes principais – figuram dentre elas as afamadas obras do MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo), a Casa de Vidro (1ª residência construída no bairro do Morumbi, em São Paulo), o SESC Pompeia, o Teatro Oficina (SP), a Casa de Cultura de Pernambuco, a Igreja do Espírito Santo do Cerrado (MG), o Museu de Arte Popular do Unhão em Salvador, a revitalização do Centro Histórico do Pelourinho, de Salvador (BA).

O seu talento inigualável sobrepuja o simples traço arquitetônico e usa a arquitetura como linguagem para uma efetiva abrangência sociopolítica no ato de repensar o mundo à sua volta. “O moderno de hoje é ainda a vanguarda moderna de 1909 no campo existencial e no campo das artes plásticas. O grande esforço moderno da civilização ocidental ainda não se esgotou e o ocidente está comendo ainda os restos de um grande Capital”. O moderno de hoje, afirmava Lina, está enraizado na vanguarda internacional europeia que é até os dias atuais a verdadeira Vanguarda. Nunca soamos tão antiquados e Lina nunca soou tão contemporânea.

Viu ainda uma geração nova, que sonhava em liberdade com a grande arrancada da arquitetura brasileira, nomes que incluíam Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Luiz Roberto e todos os outros. Uma aristocracia delicada e original, a intelectual, florescia com vigor e o país era naquele momento um privilegiado espaço para a criação artística.

A riqueza natural da nação e os seus recursos naturais também seduziram Lina: “Aonde é que você encontra um país onde você tem pedras preciosas nas ruas? Quartzo, ametistas, cristais maravilhosos, plantas formidáveis, valiosas, um clima maravilhoso, gente formidável?”. Neste meio, com ideias revolucionárias sobre arte e cultura, Lina começou a realizar as suas obras de arquitetura Brasil afora.

Em São Paulo, ao lado de seu companheiro Pietro Maria Bardi, e a convite de Assis Chateubriand, Lina dá corpo à primeira experiência moderna na área dos museus e desenvolve assim o MASP (inaugurado em 1958). “Eu não achava bonito o MASP, eu não procurei a beleza, eu procurei a liberdade. Os intelectuais não gostavam, mas o povo gostou!”. Um museu aberto ao povo e dedicado ao público em massa, com a primeira Escola de Propaganda do Brasil, o primeiro Salão de Propaganda, o primeiro desfile de moda brasileira e inseria enfim o Brasil no mundo. Realiza na Casa de Vidro o primeiro desfile de moda da grife internacional Dior e incentiva a indústria têxtil e de moda em nosso país. Ajudou a revolucionar o panorama cultural da Bahia, na cidade de Salvador e influenciou todos os artistas que saíram de lá, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Glauber Rocha e todos os novos baianos que despontaram depois cada qual em seu movimento para todo o Brasil.

Refletir Lina Bo Bardi é um desafio que nos estimula ainda hoje a procurar respostas em busca da liberdade, do pluralismo e do antropocentrismo que emerge de suas concepções policêntricas a respeito do Brasil e de nós brasileiros – Lina é muito maior do que os cem anos que se passaram e continuará atravessando o próximo século de forma invicta, inabalável e única em seu posto de embaixatriz da arquitetura e da vanguarda ocidental.

“O Brasil entra por último na historia da industrialização de marco ocidental. Uma industrialização abrupta, não planificada, importada. Os marcos sinistros da especulação imobiliária, o não planejamento habitacional popular, a proliferação de objetos na maioria supérfluos pesam na situação cultural do país criando gravíssimos entraves, impossibilitando o desenvolvimento de uma verdadeira cultura autóctone!”.

O que diria hoje Lina Bo Bardi ao ver repetirem-se padrões sociais e políticos do Brasil arcaico em ano de Copa, com bilhões gastos em obras faraônicas e monumentais estádios? O que diria no ano do seu centenário de um Brasil com uma presidente mulher e partidos políticos assistencialistas? O que diria hoje Lina Bo Bardi do jantar de aristocratas riquíssimos que se reuniram em sua casa este ano para comemorar a grife Dior? Lina era antifeminista ferrenha e provavelmente não aprovaria a presidente do nosso país apenas pelo simples fato de ser uma ‘mulher no poder’. Provavelmente também negociaria com a Dior para obter fundos para as artes e cultura do país e estimular jovens talentos. E buscaria junto à Fifa e autoridades responsáveis os fundos necessários para donativos em projetos arquitetônicos, como escolas e cursos técnicos oferecidos democraticamente para o povo que ela tanto amou.